Quero Ser Musicista Entrevista: Juliana Amaral

Quero Ser Musicista Entrevista: Juliana Amaral

A série Quero ser musicista traz sua terceira entrevistada: Juliana Amaral. Um momento especial para mim que aprecio muitíssimo seu trabalho. Não sou muito de saídas, mas como já confessei a Juliana fui muitas vezes vê-la cantar, sem ligar pra absolutamente nada que estivesse ao redor. É um canto genuíno, intenso e realizador! Me sinto feliz por essa entrevista.

Vale ressaltar que nosso projeto de entrevistas possui finalidade didática, ao qual procura trazer as musicistas, uma visão direta sobre nossas ações no mercado de trabalho. Do aprendizado universitário ou livre até a inserção nas atividades que continuamente desenvolvemos!

Aprecie! Que o caminho traçado seja sempre inspiração aos que virão! Essa entrevista é realmente especial! A foto que ilustra é de Marcelo Dacosta!

João Marcondes

ENTREVISTA #3

Nome: Juliana do Amaral Pinto – Juliana Amaral

Cidade Natal: São Bernardo do Campo, SP

Ano de Nascimento: 1973

Instrumento: Canto e piano (rudimentar)

Formação Acadêmica: Letras na FFLCH (USP).

Formação Livre: Ccursos de percepção, harmonia e improvisação no Espaço Musical; aulas particulares de canto desde 1990, com diversos professores; aulas particulares de piano quando criança/adolescente. Atualmente, faço aulas de técnica vocal com Ana Luiza.

1) Como foi seu envolvimento inicial com a música? Quando decidiu intensificar a atuação e de fato profissionalizar-se? Em que ano? 

Nasci em uma casa despretensiosa, mas intensamente musical. Minhas lembranças mais antigas são do meu pai cantando pra eu dormir. Ele sempre adorou cantar, dizia-se um cantor/poeta frustrado: por isso, cantava pra valer em qualquer lugar – em casa, na igreja, em festa de família, enfim. Ouvia-se rádio FM (que nos anos 80 tocava tudo lindamente misturado – Milton e Earth, Wind & Fire, Caetano, Gil e Michael Jackson, Gal e George Benson, Boca Livre e Steve Wonder, Djavan e Lulu Santos etc etc etc), e alguns discos (não muitos). Sou a filha do meio de 5 irmãos, e todos estudamos música em algum momento. Eu fazia piano com uma professora bem tradicional, mas gostava mesmo era de pegar as revistas VIGU da minha irmã mais velha, olhar as figuras pra montar os acordes no braço do violão, e então achar cada nota e transportar pro piano, pra poder tocar a cifra e cantar música popular.

Adolescente fui fazer teatro, e esta foi a experiência mais importante, até hoje, pra minha formação artística e musical. Depois de aulas de teatro no colegial, entrei para o núcleo brasileiro de um grupo suíço, o Pequeno Teatro Sunil (hoje a Companhia Finzi Pasca). Nos quatro anos em que integrei ativamente o grupo (entre 1990 e 1994) foram consolidadas em mim as noções de espetáculo, narrativa/discurso/percurso da palavra através do corpo e vice-versa, performance/representação (ao contrário da “interpretação”), unidade cênica/musical, excelência técnica, disciplina/repetição/treino, profundidade e leveza, duração do gesto, enfim, que resultaram na obsessão que persiste até hoje em mim pela significação constante (nenhuma nota desperdiçada), pela consistência poética (nenhuma sílaba abandonada), e por relações pessoais verdadeiras em tudo que eu faço (nenhuma pessoa é desimportante).

A passagem do teatro para a música foi natural e rápida. Sempre cantei muito em cena, comecei a estudar canto na mesma época que entrei pro teatro. Quando vi, a canção tomava conta de mim e parecia ser o veículo mais fecundo do meu gesto (talvez inclusive pela minha relação com a literatura, já que fazia Letras). Em 1994 comecei a cantar profissionalmente – ganhei o Prêmio Nascente, da USP, formei um grupo de Gafieira que fazia bailes em Pinheiros, e fiz meu primeiro show de samba no finado Villagio Café. Eu tinha, portanto, 21 anos, quando assumi a música como minha profissão.

2) Seu irmão também é músico, educador e arranjador. Há mais musicistas na família? Como foi esse processo de se tornar musicista perante a sociedade e família?

Além do João Paulo Amaral, somos irmãos da Ana Luiza, uma das grandes cantoras da nossa geração. Como disse, nossa casa era musical. O único músico semiprofissional da família na época era um primo, carioca-mineiro, compositor, violonista e excelente cantor. Nossos pais nunca se opuseram ao nosso interesse e profissionalização, ao contrário, fomos muito apoiados, apesar do eterno temor da instabilidade financeira… Internamente, eu acho muito interessante a maneira como nós três traçamos percursos profissionais e artísticos muito diferentes, mas igualmente consistentes – isso é uma alegria e uma sorte!

3) Como é atuar como atriz e cantora? De certo modo as ações convergem?

Eu tenho ainda outra atividade profissional – sou artista gráfica, sócia do Estúdio Risco (www.estudiorisco.com.br), um coletivo de arquitetura e design com um amplo espectro de atuação. Como disse anteriormente, pra mim é tudo muito misturado, ou melhor dizendo, é tudo a mesma coisa, porque não consigo fazer nada que não seja integrado a um todo – meu e do mundo. Portanto, quando atuo, canto, desenho, escrevo, costuro, cozinho, enfim, é tudo parte de um mesmo gesto que nasce e dura para ser veículo poético, artístico e político, uma manifestação da minha percepção, do meu lugar e do meu tempo.

4) Como funciona seu processo composicional? Letra ou música? Ou letra e música? E como a criação influi na composição de um repertório para um álbum ou um show, canções que convirjam, divirjam, e para enfim se complementarem entre obras próprias e de outros autores? 

Sou uma compositora bissexta, e neste sentido, muito pouco disciplinada para poder dizer como acontece meu processo composicional. Já fiz de todo jeito – letra e depois música; música e depois letra; os dois juntos; já coloquei música no texto dos outros e letrei melodias. Já fiz muito rápido, e já demorei eternidades, enfim.

Meus espetáculos/discos são para mim, como disse, um gesto único – tudo tem que estar amalgamado. A narrativa se dá de modo não necessariamente linear, ela se constrói de jeitos variados e muitas vezes sutis – relações de oposição, reforço, revelação, explicação, consonância, dissonância, proximidade, distância. Nesse sentido, a construção de um repertório é chave pro discurso, afinal, sou uma cantora da palavra – nenhuma nota ou sílaba desperdiçada… E também por isso lanço mão, amplamente, de tudo o que possa fazer sentido para essa narrativa, sejam canções inéditas, compositor de tudo quanto é canto, música conhecidíssima, música minha. A única “regra”, por fim, é fazer sentido.

5) Esse movimento cênico faz parte do que considero mais bonito em seu trabalho. Muitas vezes fui te ver cantar, e despertava uma dúvida: Quanto planeja na interpretação de uma canção? E quanto há de improvisação? E como prever isso para musicistas que estão hoje iniciando uma atuação artística?

Nossa memória é corporal – parece óbvio, mas não é. A gente fica achando que é a cabeça que estuda música, mas isso é um equívoco completo, uma imposição do academicismo europeu mais conservador, que considera o corpo como um subalterno do intelecto – vêm daí, também, algumas das coisas mais perversas que a humanidade produziu (o racismo e o machismo entre elas, mas eita(!) que é comprida essa conversa, desculpa…). A gente não desaprende a andar de bicicleta, a ler, nadar ou tocar um instrumento, porque é o corpo (e não o pensamento) o repositório de nossas memórias. O estudo de improvisação num instrumento funciona assim, não é? Estuda escala, campo harmônico, decora a melodia, as variações da melodia, o improviso do outro, escuta, escuta, repete, repete, experimenta, erra, experimenta, acerta, repete, erra, acerta, repete, para que no momento da performance todo esse repertório de variantes possa estar à disposição do nosso movimento, de um gesto improvisado, que não é exatamente racional, mas é uma criação em tempo real feita a partir de um tanto de coisas que já estão lá, guardadas no nosso corpo. Isso serve pro instrumento, pra canção e pro gesto: é o acúmulo de experiências e de estudo que constroem minha performance.

E no caso do músico da canção, tudo passa, necessariamente, pela dimensão da palavra, e isso é uma responsabilidade sobreposta, uma tarefa maravilhosa. O cantor tem que ter uma dedicação e devoção profundas pelo que está sendo dito, tem que saber e querer dizer o que está dizendo, desse jeito – cantado. Música e poesia na canção, eu acho, são indissociáveis, e o respeito à palavra e à melodia são o que fazem, para mim, o trabalho do cantor consistente e único.

6) Qual a importância de diversificar para a carreira da musicista? Você educadora vocal, artista visual, compositora, atriz e intérprete, como interagir mantendo as áreas ativas continuamente?

É como eu acabei de dizer: a gente tem que alimentar o corpo e a sensibilidade – de poesia, movimento, experiências afetivas, de relações verdadeiras, de alegrias desimportantes, tem que ver filme, ver exposição de artes e espetáculo de dança, viajar, ler muito, muito mesmo, conhecer gente diferente, artista diferente, abrir a cabeça e o horizonte. E, sobretudo, a gente tem que estar disponível para o mundo e para a música, ser veículo, e não ser “atleta de nota”… Porque o músico e o artista da canção têm que estar a serviço – não só do que eu penso, sei e sinto como indivíduo, mas daquilo que a canção (música e palavra) precisa para ser dita: às vezes a música quer o silêncio, às vezes o ruído, e a gente precisa estar sensível, atento, permeável para perceber e “obedecer”.

Além disso, o músico de qualquer instrumento está lidando/agindo com o campo do simbólico: nosso trabalho não serve pra nada, a não ser alimentar a sensibilidade (ou o espírito) de quem nos vê/ouve; nossa função é emocionar (na etimologia da palavra, colocar em movimento), das mais diversas maneiras, e isso vai além do entendimento ou percepção racional do que fazemos. É no corpo que o público (e o artista) sente e é atingido: ele dança, chora, ri, se entristece, se alegra, admira, se surpreende, se incomoda, reflete, sendo convidado a mover-se, sair do lugar… A dimensão do corpo é fundamental, e o papel político desse movimento que provocamos – a emoção, o simbólico e a reflexão – não pode, nunca, ser abandonado, ou pior, negligenciado.

7) São 4 álbuns autorais. O que para melhor representar introduzindo seu trabalho ao novo ouvinte ou leitor do BLOG?

Todo álbum é um registro, um retrato de um momento, né? Então acho que o Açoite, meu disco mais recente, é o que hoje diz mais sobre mim… Dá pra ouvir em todas as plataformas, incluindo o youtube. Dá pra saber sobre o processo de construção, sobre quem estava lá, ou ver vídeos e fotos dos espetáculos e da gravação, além de ouvir todos os meus discos no site do projeto: www.circusproducoes.com.br/acoite

8) Como é o mercado musical em sua visão perante a sociedade? É possível observar uma discrepância de gênero em determinadas áreas de atuação do musicista. Na área da regência, composição, e arranjo, a discrepância entre profissionais atuantes chega a ser assustadora. As oportunidades para consolidação da carreira das musicistas e dos musicistas são as mesmas? 

O machismo é formador e estruturante das sociedades colonizadas, é parte do projeto de construção e consolidação do Brasil como nação (assim como o racismo, a misoginia etc), e obviamente ele está presente em todas as áreas da atuação musical. A discrepância é vergonhosa, as oportunidades não são as mesmas, e isso precisa ser entendido verdadeiramente para que se trate a questão com a dimensão que ela realmente tem: não é circunstancial, mas sim um amplo e profundamente enraizado mecanismo construtivo de dominação. Mas me parece que a consciência disso dentro da classe musical caminha muito mais lentamente do que em outras áreas, artísticas ou não, o que é espantoso. Ou seja, temos um longo caminho a ser percorrido, e que vai demandar, necessariamente, uma reflexão importante e dolorida, vigilância constante, e movimentações profundas dentro e fora da classe.

9) Quais projetos tem desenvolvido? E quais conselhos você daria a uma musicista iniciando sua carreira hoje, com a decisão de ingressar nessa área tão fundamental para a sociedade em ponto e contraponto?

Este ano devo finalizar o percurso do Açoite, lançado em 2016. Ainda quero fazer shows do disco, mas ainda não tenho espetáculos agendados. Neste semestre, inicio uma parceria com o bailarino Rubens Oliveira para fazer a direção musical (além de cantar e dançar) nas próximas edições do projeto “Corpo em Risco”. Retomo também nesse semestre o trabalho com os compositores Micael Antunes e Gustavo Bonin, com quem, há 3 anos, fiz uma série de “poemaudios” para o livro “Cena Absurdo”, de Pedro Marques, utilizando procedimentos e ferramentas da música contemporânea  (www.cenaabsurdo.com.br). Vamos agora trabalhar um novo poema do Pedro em 12 partes chamado “Na Carreira”, e que será lançado na internet aos pedaços, com material audiovisual. E por fim, tenho já meu novo projeto pendurado no trapézio das ideias, um espetáculo de canções autorais (minhas e em parceria), com formação mínima (piano e voz, provavelmente), e uma intenção mais cênica e mais radicalmente política, no sentido da performance em si (voz, música e gesto) e do modo de circulação e apresentação; tudo ainda balançando pra tomar corpo…

Sobre o conselho aos jovens, vou repetir o que ouvi de um professor na faculdade, quando tinha 17 anos: leia o “Grande Sertão, Veredas” (Guimarães Rosa), e vá viver, menina!

Caríssima Juliana, agradeço muitíssimo a entrevista.

A contribuição com uma nova geração de musicistas, melhor formada, mais informada, é um legado que com certeza teremos em comum.

Um abraço!

Entrevista realizada por e-mail em 12 de abril de 2019. Quer saber mais sobre a Juliana Amaral? Acesse os espaços abaixo!

www.circusproducoes.com.br/acoite

www.facebook.com/JulianAmaralOficial

www.ascartasridiculas.blogspot.com

www.estudiorisco.com.br

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