Quero ser músico entrevista Debóra Gurgel

o que é orquestrar

Quero ser músico entrevista Debóra Gurgel

O BLOG Souza Lima traz hoje uma entrevista muitíssimo especial.

Debora Gurgel – pianista, flautista, arranjadora, compositora, produtora musical, educadora, inaugura uma coleção de pensamentos exclusivos do desenvolvimento da carreira musical.

Serão vinte musicistas, entre instrumentistas, produtoras, arranjadoras, intérpretes e educadoras. Sinal de muito conhecimento vindouro. E já destaco: A entrevista com a Débora é tão completa, que poderíamos até mesmo parar por aqui. Débora respondeu detalhadamente cada questão, fazendo de um bate-papo aprendizagem. Uma verdadeira aula! Se são orientações de carreira, reflexão, não sei, porque para mim é tudo isso junto. Ser musicista é muito especial.

Aprender é ainda mais do que se organizar, é conhecer e se instigar e conceber futuros. Espero que apreciem! E muito além: se inspirem!

ENTREVISTA #1

Nome: Debora Gurgel (Debora Picarelli do Amaral Gurgel)

Cidade Natal: São Paulo

Ano de Nascimento: 1962

Instrumento: Piano/Flauta Transversal

Formação Acadêmica: Engenharia na POLI/USP – turma de 1984
Formação Livre: Piano com Hermínea Sanches, Fernando Mota e Amilton Godoy. Flauta com José Carlos Prandini e Arranjo e Orquestração com Roberto Sion, além de aprender muito com cada músico que já toquei.

1) Como foi seu envolvimento inicial com a música? Quando decidiu intensificar a atuação e de fato profissionalizar-se?

Desde cedo (5 anos) eu ouvia o piano tocado por uma vizinha que era professora de piano clássico, Hermínea Sanches. Pedia aos meus pais que queria tocar piano, e comecei a estudar com ela aos oito anos.

Meus pais ouviam todo tipo de música, principalmente música brasileira e jazz. Eu colocava os discos e tentava tocar junto com as gravações, e além das obras eruditas que aprendia com a professora, arriscava tirar as músicas dos discos. Aos 14 anos descobri o “CLAM”, escola de música popular dirigida pelo Zimbo Trio, na época a única escola de música popular em São Paulo, e fui estudar com Fernando Mota e posteriormente com Amilton Godoy. Aí o mundo se abriu, e desde os 14 anos eu sabia que o meu caminho era a música.

Só não escolhi cursar uma faculdade de música porque na época só existiam cursos de música erudita, e eu sabia que não era o que eu queria.

2) Quais as principais barreiras encontradas para o desenvolvimento da sua carreira?

Acho que todos nós encontramos obstáculos para transpor, em qualquer carreira. O que nos faz transpor essas barreiras é a “gana”, o brilho nos olhos, o amor incondicional pelo que fazemos, e a certeza de que estamos no caminho certo.

Em vários momentos da minha vida me questionei se isso era para mim mesmo, se eu estava fazendo as escolhas certas, mas não há como a música não fazer parte da minha vida. Sem música, eu não seria uma pessoa feliz.

Encontrei barreiras em vários aspectos, tais como: falta de lugares para tocar, falta de tempo para estudar da forma que eu queria, pois tinha que usar o tempo para resolver assuntos cotidianos, ter que usar o tempo em que poderia estar tocando para gerenciar a carreira, etc. Mas o que acho mais importante contar aqui para quem está começando é a barreira psicológica. Demorei muito para perceber e ter a consciência de que eu sou eu, não sou o Oscar Peterson, nem o Bill Evans, nem o Cesar Camargo Mariano.

Nós nos inspiramos nos nossos ídolos e almejamos tocar como eles, com a mesma “técnica”, com a mesma liberdade. Estudamos muito para alcançar isso, mas esquecemos de que a história de vida de cada um é diferente e transparece na música que fazemos. Não toco nem melhor nem pior do que o músico A ou B, e isso não importa para mim. O que eu toco é o resultado do que eu estudei, do que eu vivi e do que me emociona, e com isso tento transmitir às pessoas a emoção que sinto ao tocar. Continuo estudando (e muito!), pois ainda tenho muito a aprender, mas não acho que só vou tocar bem depois que eu chegar num nível “x”. Fico feliz com o que já tenho todos os dias, e estudo para melhorar sempre!

Digo isso, pois cada vez mais vejo os jovens me procurando para ter aulas tremendamente insatisfeitos e angustiados com a música que fazem, apenas por que não conseguem tocar igualzinho ao músico X ou Y. Cuidado: “o que importa é ser feliz durante o caminho, não só no final”!

3) Incrível Débora, penso exatamente assim. Em sua obra fonográfica destaca-se o arranjo, tanto quanto a atuação como pianista, e ainda como flautista!  Quais suas principais referências para um desenvolvimento tão diversificado?

O tocar piano é uma paixão, e como consequência do tocar veio o compor e arranjar, tão fascinantes quanto. Com a mente focada em arranjar, veio a vontade de tocar um timbre que eu adoro, que é o da flauta. Reconheço que sendo diversificada assim, sobra menos tempo para estudar cada instrumento, mas a visão mais abrangente acaba compensando isso, na minha opinião. Vários músicos que eu admiro partilham dessa visão ampliada sobre a música, como Herbie Hancock, Amilton Godoy, Chick Corea(já ouviram ele tocar bateria?), Cesar Camargo Mariano, André Mehmari, Léa Freire… A lista é enorme!

4) Qual a importância de diversificar a carreira de musicista? Dar palestras, aulas, tocar mais de um instrumento, arranjar?

Fundamental em minha opinião. Essa visão ampla de arranjar, compor e tocar vários instrumentos faz com que você tenha mais certeza do caminho a seguir. Nada substitui o contato diário com o instrumento, o estudo que coloca “tijolo sobre tijolo”, mas as outras atividades fazem você questionar e pensar com mais clareza os caminhos escolhidos.

Quanto a aulas e palestras, eu pergunto: Se nós que sabemos um pouquinho mais não passarmos esse conhecimento a quem quer aprender, o que será do mundo? Dar aulas e palestras é uma troca maravilhosa. Eu aprendo com os alunos tanto ou mais do que eles aprendem comigo. E não é só uma troca de assuntos “musicais”. É uma troca de experiências de vida.

5) Uma dica aos estudantes e ouvintes: qual sua discografia pessoal, e por onde começar a ouvir seu trabalho?  

A maior parte da minha discografia é autoral. Acho que os discos que mais me representam são “Debora Gurgel” de 2012 para começar, e os discos “UM”, “Luz”, “Garra” e “DDG4”, gravados com o quarteto que tenho com Dani Gurgel (voz), Thiago Rabello (bateria) e Sidiel Vieira (baixo).

Todos eles estão disponíveis no spotify e outras plataformas, e todas as sessões de gravação foram filmadas e estão disponíveis no youtube.

Além disso, sempre disponibilizamos as partituras “leadsheet” no nosso site em PDF, para que mais gente possa ter acesso e tocar as músicas.

Gosto demais do último disco que gravamos, chamado “Rodopio”. Este ainda não está nas plataformas digitais, seu lançamento oficial será em breve. É um disco completamente autoral, brasileiro, onde tocamos à vontade e depois fizemos os livros com a transcrição completa (é isso mesmo que você leu!!) de todos os instrumentos, incluindo solos, grooves, acompanhamentos, cada nota!

Uma discografia que vocês podem ouvir é:

-Com o “Dani & Debora Gurgel Quarteto”:
Rodopio/2018, The best of DDG4/2017 (saiu só no Japão), DDG4/2016, Neon/2015, Garra/2015, Luz/2014, Um/2013

-Piano Solo: EP Piano Solo (2017)

-Em trio com Sidiel Vieira e Thiago Rabello e participação especial de Dani Gurgel, do Septeto S.A. e Guilherme Ribeiro

Debora Gurgel/2012

-Com o Triálogo , trio formado com Itamar Collaço (baixo) e Pércio Sapia (bateria)

Triálogo/2001

-Com o grupo DICA , onde toco flauta com Amador Longuinni Jr. (piano), Itamar Collaço (baixo) e Celso de Almeida (bateria)

DICA/2000

Todos esses são essencialmente autorais, com excessão de NEON

Além desses, vocês podem ouvir também

“Conrado Paulino Quarteto”

“Conrado Paulino – Quatro Estações”

“Adriana Godoy – Marco”, onde estou como pianista, arranjadora, e no caso da Adriana, como diretora musical.

6) Como verifica a carreira do musicista hoje, em comparação ao momento em que profissionalizou, tanto sobre mercado quanto sobre a formação, hoje com graduação, e faculdade como percurso praticamente realizado por todos?

Sinto falta por não ter tido uma formação acadêmica em música, pois ficaram alguns “buracos” que tive que estudar sozinha. Ao mesmo tempo discordo da opinião que muitos tem de que a formação acadêmica é o bastante para formar um bom profissional. Não é. É complementar ao que considero o mais importante, a prática, o exercício de tocar. O instrumento tem que se tornar um pedaço do seu corpo, e não há como o estudo solitário, ou apenas com playbacks, ou mesmo apenas as práticas de conjunto das escolas resultarem numa formação completa. É apenas um início.

O mercado é pequeno para música de bom nível, mas isso não é novidade. Sempre foi assim. Há épocas um pouco melhores, outras nem tanto, mas o mercado sempre foi pequeno, com poucos lugares para tocar e muitos músicos de qualidade. Não dá para ficar em casa esperando alguém “descobrir” você, mesmo que você seja um gênio. Tem que se relacionar com as pessoas, sair para tocar, montar grupos com os colegas, e como costumo dizer aos alunos, “mostrar que você existe”. E também não dá para pensar “Ah, só vou sair para tocar depois que eu tiver 50 músicas decoradas em todos os tons”. Seria o ideal, mas isso vai acontecer um dia, durante o percurso.

7) Como é o mercado musical em sua visão perante a sociedade? Os mesmos problemas que temos na sociedade brasileira se refletem no mercado musical? Tanto quanto oportunidades, e consolidação da carreira das musicistas?

Vejo dois problemas sérios, e não acho que são exclusivos do Brasil, mas sim mundiais. Os mesmos problemas tomam uma dimensão maior no Brasil porque temos sérios problemas sociais, e os assuntos culturais são deixados mais de lado ainda, erroneamente. Cultura não é supérfluo. Cultura de qualidade edifica e nos faz seres pensantes mais conscientes.

O primeiro problema que enxergo é a falta de investimento em educação, que resulta na falta de paciência das pessoas em geral para gastar tempo com atividades mais elaboradas como ouvir música com atenção, tanto quanto ler um livro um pouco mais extenso. Eu disse “ouvir”, e não usar a música como fundo musical para namorar, cozinhar, ou outra atividade. Acho muito legal usar a música como fundo musical, também faço isso e gosto, mas também gosto de ouvir música com atenção. Atenção a qual emoção aquela música me traz, aos elementos que estão nela, aos timbres, aos acordes, aos caminhos harmônicos, aos motivos que constroem a melodia. Você não precisa ter audição analítica para tudo, basta audição sensorial. Quantas pessoas você conhece que param para “ouvir música”? E não apertam o botão de “forward” depois de 10 segundos? Tudo é muito imediato, com pressa, o resultado emocional tem que ser muito rápido, nos primeiros segundos, senão vamos para a próxima! Por isso falo em falta de paciência. O resultado disso é que a música feita com um pouco mais de elaboração encontra poucos ouvintes.

O outro problema que vejo é a falta de acesso das pessoas à música mais elaborada. A indústria cultural dita o que deve ser ouvido e só quem tem um pouco mais de curiosidade para procurar encontra a música que está sendo produzida atualmente e está completamente fora da mídia.

A internet é uma benção, mas também é um emaranhado onde só os curiosos acham as coisas.

Caberia aos meios de comunicação com um pouco mais de penetração na vida das pessoas em geral difundir um pouco mais de cultura, e isso não acontece. A indústria cultural divulga o que dá mais lucro, e infelizmente o que dá mais lucro é o “produto” de fácil e rápida digestão, que cada dia é mais raso.

Quanto à visão do lado feminino, das musicistas, acho que é uma distorção histórica, e que ainda vai demorar muito para chegar à igualdade no mercado. Há incontáveis mulheres tocando, arranjando e compondo tão bem como nunca, mas em menor número que os homens, sim. Se pensarmos que até algumas décadas atrás ainda havia o pensamento de que “mulher não sai para tocar à noite”…, até que estamos evoluindo.  Eu pessoalmente nunca tive problemas por ser mulher, mas ouvi incontáveis vezes pérolas como “Mas como assim? Você vai voltar para casa depois de tocar sozinha de madrugada?” ; “Puxa, você toca feito homem!” , “ Puxa, mas não tem nenhum homem pra te ajudar a carregar o teclado?”. São “cuidados” e “elogios tortos” que denotam certo preconceito arraigado na nossa sociedade.

8) Verificando suas turnês pelo Japão, como o músico brasileiro é visto quanto a nossa música no oriente, mesmo defronte em nosso país com um mercado fonográfico tão injusto e desbalanceado? Ainda há valorização para música instrumental, e para algo mais refinado?

Sim. Fazemos turnês anuais ao Japão desde 2013, e em todos os shows o interesse pela nossa música é crescente. O público japonês venera a música brasileira, ouve , vai aos shows, sabe a sua história, e muitas vezes conhece mais música brasileira do que nós mesmos. Há guias publicados com todos os lançamentos do ano separados por música instrumental, canção, etc, e comentados! As lojas de cds (que ainda existem por lá) tem sessões específicas de música brasileira.

Ouve-se música brasileira nos lobbys dos hotéis, nas lojas de departamentos, nas rádios, nas estações de metrô, é impressionante.

Para os que se interessarem, há um artigo muito elucidativo sobre o mercado musical no Japão escrito pela Dani Gurgel, neste link:

https://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/131501?fbclid=IwAR1D0FkEYpTgBt1HytRlHYunUa0fYfU8aq0mADTdrYwuQe_pNEOGTpq_CKU

9) Quais os planos para o futuro? Discos? Livros? Classes?

Sigo caminhando! Teremos o lançamento do disco “Rodopio” nos próximos meses. O próximo disco será em 2020 com uma formação maior – ainda vou começar a escrever, e estão no forno livros didáticos com cada volume dedicado à um ritmo brasileiro, com exercícios, história, recursos melódicos e harmônicos típicos, discografia básica para ouvir, lista de músicas para tocar, e 3 arranjos para uma composição original minha usando recursos gradativos, um para iniciantes, outro para nível intermediário e outro para nível avançado.

Sigo com os workshops onde conto a minha forma de encarar a composição brasileira e os recursos necessários para isso.

Caríssima Debora eu agradeço muitíssimo a entrevista!

A contribuição com uma nova geração de músicos profissionais, melhor formada, mais informada, é um legado que com certeza teremos em comum.

Muito obrigado!

Entrevista realizada por e-mail no dia 04 de março de 2019. E como ficar sem apreciar?