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Quero ser musicista Entrevista: Júlia Tygel

Quero ser musicista Entrevista: Júlia Tygel

A série Quero ser musicista traz sua segunda entrevistada: a educadora, pianista, arranjadora, produtora Júlia Tygel, que trouxe um relato pleno e completo de sua carreira, dificuldades e êxitos. Inspirador.

Nosso projeto de entrevistas possui finalidade didática, procurando trazer aos musicistas, e nesse momento em especial as musicistas, uma visão direta sobre nossas ações no mercado de trabalho. Do aprendizado universitário para a inserção nas atividades que continuamente desenvolvemos!

Aprecie! Considero como uma das grandes entrevistas que pude realizar.

João Marcondes

ENTREVISTA #2

Nome: Júlia Zanlorenzi Tygel (Júlia Tygel)

Cidade Natal: Salvador/BA, mas cresci em Campinas/SP

Ano de Nascimento: 1984

Instrumento: Piano

Formação Acadêmica: Graduação na Unicamp (Composição), mestrado na Unicamp (etnomusicologia), doutorado na USP com estágio na City University of New York (musicologia / análise musical).

Formação Livre: Piano e diversos cursos na Escola de Artes Pró-Música de Campinas, na infância; um ano no curso avançado de Composição na Emesp; festivais (Curitiba, Juiz de Fora).

1) Como foi seu envolvimento inicial com a música? Quando decidiu intensificar a atuação e de fato profissionalizar-se? Em que ano?

Minha avó paterna tocava piano muitíssimo bem – poderia ter se profissionalizado, se quisesse, ou se a época / situação fossem outras. Disso decorreu que tenho um tio músico profissional (David Tygel, do Boca Livre, que também compõe para cinema), e meu pai tocava piano e violão como amador. Como única neta menina, estive muito próxima da minha avó na infância e isso me influenciou definitivamente. Contudo, quem de fato percebeu que eu tinha esse interesse / aptidão foi minha mãe (ela conta que cantei antes de falar), e ela me incentivou e apoiou incondicionalmente nesse caminho desde a tenra infância. Meu pai, paradoxalmente, só se convenceu da minha profissionalização como musicista bem mais tarde. A música então foi um caminho razoavelmente natural, muito embora, especialmente na adolescência, eu tivesse muita preguiça de estudar – sempre gostei mais de compor / criar – e também tivesse interesse pela literatura. Talvez tenha sido decisivo um encontro de final de ano na casa da minha avó, no qual as desavenças familiares foram suspensas quando todos fizeram música juntos, em torno do seu piano. Acho que foi ali, por volta dos 16 anos, que de fato tomei a decisão de me profissionalizar. Aos 17 anos prestei o vestibular, e o resultado saiu no dia do meu aniversário de 18 anos.

2) Como foi a escolha pelo bacharelado em composição? O curso da UNICAMP atendeu suas expectativas quanto a composição?

Como disse, eu sempre gostei mais de compor que de tocar o repertório pianístico. Na minha casa ouvia-se música clássica, música popular brasileira e também coisas “new age” que minha mãe gostava. Eu achava tudo muito bonito e lembro claramente de como fiquei decepcionada quando comecei, na escola, a conviver com repertórios que as pessoas ouviam – eu achava que, se aquilo que eu conhecia era já tão bom, deveria haver um vasto repertório maravilhoso que eu ainda não conhecia. Fiquei muito frustrada ao perceber, no universo imediatamente externo à minha casa, que não era exatamente assim. Claro que, com o tempo, meu universo se expandiu e descobri (e venho descobrindo) muitos repertórios incríveis, em diversos gêneros, que preenchem (ao menos parcialmente) esse lugar sonoro imaginado na infância. Mas acho que a composição veio, por um lado, da busca por preencher esse lugar – eu queria fazer uma música que ainda não conhecia – e também porque sempre gostei muito mais de ficar “brincando” no piano do que ficar de fato estudando o repertório pianístico.

Não sei se meus professores da época lerão essa entrevista (risos), mas o curso definitivamente não atendeu às minhas expectativas. A formação superior em música teve coisas maravilhosas, abriu meus horizontes, e conheci alguns professores excepcionais – como o Sílvio Baroni, meu professor de piano desde então – que de fato mudaram minha vida. Contudo, eu esperava aprender ferramentas que historicamente os compositores usaram para lidar com “problemas” musicais que são extratemporais, por exemplo: como organizar uma forma, ou como desenvolver uma ideia. Acho que é essencial aprender como isso se deu em estéticas do passado, para que possamos pensar nos desafios atuais. Eu não sou uma compositora de música erudita – diria que a música que faço é fronteiriça entre o erudito e o popular – mas realmente acho que, mesmo que você queira se tornar um compositor vanguardista, é essencial ao menos conhecer as ferramentas históricas. O curso de composição da Unicamp tem – ou tinha, quando estudei lá – uma abordagem ao meu ver livre demais para quem, como eu, ainda precisava de uma formação básica consistente. Acabei indo buscar isso em outros lugares e de forma autodidata.

3) Um país como o Brasil tão repleto de canção, concorda que deveria ter um bacharelado em composição popular – letra e música? Como conscientizar sobre um programa tão valioso que até já possui no mercado pós-graduação e cursos livres? A mística de que a composição popular é um Dom atrapalhar a constituição de um processo reflexivo que culmine em um programa dessa espécie?

Puxa, acho que vou te decepcionar nessa resposta: não concordo. Acho que compartimentalizar a música (e, mais filosoficamente, a vida) é algo limitante. É claro que não dá pra todo mundo saber tudo, então algumas categorias têm que ser separadas para que seja possível estudar o básico naquele universo, mas acho que devemos fazer isso o mínimo possível. No caso da canção brasileira, ela conversa com diversos outros repertórios: o próprio Tom Jobim, por exemplo, tem influências tanto da música erudita (especialmente Villa-Lobos, Debussy e J. S. Bach) quanto do jazz, além da história da música brasileira antes dele – e é ainda possível traçar paralelos de suas canções com os Lieder de Schubert ou Schumann. Não dá pra estudar Tom Jobim sem que se tenha uma noção desses outros repertórios. Assim, não acho que se deva limitar a formação de futuros compositores ou intérpretes de canção ao universo da canção – quanto mais abrangente puder ser a formação dos futuros cancionistas, ao meu ver, mais elementos eles terão em seu arcabouço criativo e de performance.

Com relação à mística do dom, acho que ela está, felizmente, sendo desconstruída cada vez mais, conforme avançam os cursos e estudos sobre música popular no Brasil. O que se chama de música popular brasileira é altamente erudita do ponto de vista estrutural. Por isso acho que deve ser estudada com o maior escopo histórico e teórico possível, com poucas limitações estéticas. É claro que existe algo indizível que nos conduz ou facilita a fazer certas coisas – podemos chamar de dom, aptidão ou mesmo interesse. Mas isso não é de forma alguma determinante, em minha opinião.

4) Qual a importância de diversificar para a carreira de musicista? Você como educadora, pianista, arranjadora, compositora, e agora atuando em uma área que parece mais administrativa da fundação OSESP?

Então… isso pra mim foi um caminho natural, tanto por ter muitos interesses mesmo, como por ter, acho, um perfil mais dispersivo. Sempre tive uma pontinha de inveja daquelas pessoas que desde cedo sabem que querem aquela uma coisa bem específica e focam todas as energias nela… eu nunca tive isso, sempre gostei de muitas coisas diferentes e em geral fico fazendo malabarismos para elas coexistirem – ora uma sobressai sobre as demais, ora outra. Na minha experiência, vejo que, por um lado, isso é um diferencial, por outro, um fardo: um diferencial porque você fica uma pessoa versátil e potencialmente interessante profissionalmente. Para me tornar professora na Faculdade de Música Souza Lima, por exemplo, certamente contou o fato de eu conciliar a carreira acadêmica (à época eu estava finalizando o doutorado, e a titulação foi com certeza um diferencial) à carreira artística, já que a faculdade é bem voltada à prática. Aqui na Osesp é um diferencial eu ter a bagagem acadêmica (ter uma prática com a escrita e com a pesquisa), a formação na área de música e a vivência prática nesse campo, além de conhecimentos básicos sobre produção, que fui aprendendo na gestão de meus próprios projetos. Então, nesse sentido, essa multiplicidade pode ser ótima. No entanto, eu tenho eternamente a sensação de que não faço nenhuma das coisas às quais me dedico com a profundidade que eu gostaria – porque, claro, não dá tempo mesmo. E já virei muitas (muuuuitas) noites em função disso, para “dar conta” de tudo – afora abrir mão de muitas coisas da vida pessoal, enfim… a história de todo músico. Tenho procurado melhorar minha organização pessoal, especialmente agora que estou na Osesp, que exige bastante dedicação – e a organização da própria instituição tem me inspirado nesse sentido. Outro “fardo” de fazer várias coisas é, muitas vezes, não se encaixar em um perfil profissional que já existe, e em vagas ou programas que já existem: a música que eu faço não é exatamente popular nem exatamente erudita – muitas vezes acontece de ela não se encaixar em programações que são mais restritas a uma coisa ou à outra. Eu componho, mas não sou compositora erudita para, digamos, prestar concursos de composição nesse âmbito. Também não sou pianista erudita nem pianista popular, exatamente, para, digamos, me adequar a um programa de aperfeiçoamento específico em uma das duas áreas. Então, com frequência, tenho que ter uma atitude pró-ativa em relação a abrir meus próprios caminhos (o que é mais uma coisa pra fazer no meio das outras, rs), ou me adequar a um caminho que já existe, mas que me preenche apenas parcialmente, e fazer as outras coisas em paralelo.

Afinal, acho que é uma questão de perfil – de se interessar por muitas coisas, ou de se interessar por poucas coisas e aprofundar-se nelas. Acho que ambos são importantes e que são mutuamente complementares. Mas já perdi muito sono antes de chegar a essa conclusão e aceitar que tenho o primeiro perfil, rs…

5) Quais as expectativas para função que iniciou na fundação OSESP no último mês? E como é para uma musicista atuar em um setor que envolve práticas administrativas? A universidade para o curso de música oferece as ferramentas para tal atuação?

Na Osesp sou Assessora Artística, isto é, assessoro o Diretor Artístico Arthur Nestrovski em suas funções na Fundação Osesp. A Fundação Osesp não é só a Orquestra: é também o Coro da Osesp, o Quarteto Osesp (quarteto de cordas), o Coro Acadêmico (um coro profissionalizante para jovens), o Coro Infantil, a Academia da Osesp (para profissionalização de jovens músicos), o Selo Digital (CDs lançados pela Osesp), o Centro de Documentação e a Editora da Osesp (editoração de partituras), todas as publicações da Osesp: a Revista Osesp, os livretos com notas de programa… afora isso há os programas de difusão e os educacionais – alguns feitos em parceria com outras instituições – como os Concertos Digitais (transmissão online de concertos), o Falando de Música (palestras didáticas sobre os programas dos concertos), os Concertos Acessíveis (com audiodescrição), o Descubra a Orquestra (concertos didáticos para crianças), e muitos outros – é bastante coisa, ainda estou tentando assimilar tudo! E é o Diretor Artístico que responde (embora não de maneira unilateral) pelo viés artístico dessas atividades. Meu papel é assessorá-lo balizando as ações, intermediando os envolvidos e acompanhando a execução das atividades da Osesp para que elas estejam de acordo com o projeto artístico da instituição. Então há sim uma parte mais burocrática, mas há também bastante espaço para a criatividade – mais do que eu imaginava. Como serão as próximas Temporadas, quais artistas serão convidados, quais serão os programas dos concertos, como serão os textos que falam sobre esses programas… esses assuntos fazem agora parte do meu cotidiano. Recentemente foi lançada a edição 2019 da Revista Osesp, para a qual tive a honra de escrever um artigo, e foi um grande aprendizado participar de sua editoração (é possível ler a versão online da Revista aqui: https://bit.ly/2Jo4j43; para quem quiser a versão impressa, ela está à venda na Sala São Paulo). Também lido com as negociações sobre a vinda dos artistas convidados, e sou a pessoa a quem chegam propostas de pessoas que querem colaborar artisticamente com a Osesp – estou “do outro lado do balcão”, e isso me dá a oportunidade de ver como a engrenagem funciona de uma outra maneira, e em alto nível. Tenho aprendido muito e isso já está se refletindo na maneira como eu mesma tenho pensado minha carreira e meu engajamento no mercado. Afora isso, estou próxima do fazer musical cotidiano da orquestra, o que é muito enriquecedor, pois seus músicos são incríveis, e passam por aqui maestros e solistas de enorme envergadura. Enfim, está sendo uma experiência maravilhosa e cheia de aprendizados. A grande questão é dosar o tempo (voltamos ao assunto anterior…). No momento estou fazendo “jornada dupla” e fico no piano depois do expediente. E, justo agora, minha carreira artística também voltou mais à ativa (fruto de esforços que iniciei, principalmente, no ano passado), depois de um importante silêncio no qual precisei olhar para dentro, antes de ter algo a dizer novamente.

O curso de música me preparou para esse trabalho na medida em que me abriu muitas portas – mas eu tive que entrar e percorrer o caminho que cada uma ofereceu. Por exemplo: tive o privilégio de ter tido bolsas para a realização de pesquisas a vida toda (FAPESP, CAPES e Fulbright). Mas eu tive que fazer as pesquisas, o que é um trabalhão, rs. Fui boa aluna na faculdade praticamente toda. E fiz várias outras coisas em paralelo, que me enriqueceram profissionalmente. Não há uma linha reta (ainda bem!).

Tenho consciência de que fui muito privilegiada (e ainda sou), podendo ter feito as escolhas que queria e tendo oportunidades para me desenvolver nas áreas que escolhi. Isso infelizmente é para poucos no Brasil. O que acho que tenho de mérito é ter aproveitado essas oportunidades – o que, no fundo, dado o contexto, era minha obrigação moral com o que recebi.

6) Qual a importância de uma carreira acadêmica consolidada nos dias de hoje? Faz parte também da diversificação e atuação profissional, mas como dividir atenções entre tantas faces que precisamos desenvolver?

Na minha trajetória foi essencial. Hoje em dia acho que todo músico em começo de carreira – a não ser que já tenha uma carreira consolidada ou não queira mesmo – deve tentar fazer um curso superior, pois isso abre muitas portas. Mas, novamente: o curso abre as portas, não percorre os caminhos para você. Ainda mais nas áreas da música como performance ou como criação, nas quais o fazer em si conta muito mais que o diploma. Enfim, acho que o curso (mais que o diploma em si) é importante, mas o trabalho é de cada um. Em relação a diversificar as atividades, para mim foi essencial também. Contudo, como disse, não acho que todos têm o mesmo perfil, e há pessoas que são muito felizes e têm sucesso fazendo poucas coisas muito bem… Acho importante os músicos jovens experimentarem diversas atividades e perceberem o que gostam e o que não gostam de fazer – a gente só sabe mesmo fazendo. De fato acho que existe uma pressão do mercado para que os profissionais sejam multi-facetados, mas acho que o importante é ser feliz, e tudo que a gente faz com o coração e com afinco – tendo oportunidades para isso – frutifica. Acho que a escolha deve ser por aí, ao menos sempre que possível.

7) Como é o mercado musical em sua visão perante a sociedade? É possível observar uma discrepância de gênero em determinadas áreas de atuação do musicista. Na área da regência, composição, e arranjo, a discrepância entre profissionais atuantes chega a ser assustadora. As oportunidades para consolidação da carreira das musicistas e dos musicistas são as mesmas?

Hoje em dia há um crescente debate sobre o tema, que acho essencial. São milênios de dominação social masculina, contra décadas (ou, no máximo, poucos séculos, dependendo de quando começamos a contar) de luta mais intensa por direitos iguais. De fato, há gritantemente menos regentes, compositoras e arranjadoras mulheres que homens. Acho sim que existem oportunidades diferenciadas para consolidação nas carreiras, mas eu gostaria de abordar uma questão mais tênue, sobre a qual venho refletindo há algum tempo. De uma maneira geral, a adequação social é muito (MUITO) mais cobrada das mulheres que dos homens. Vestir-se e portar-se “adequadamente” é uma preocupação muito mais intensa no cotidiano feminino que no masculino: há uma linha tênue entre ser “ousada” e ser “vulgar”, entre ser “elegante” ou “comportada demais”, por exemplo. E seremos certamente julgadas socialmente ao transpassar essa linha imaginária. Daí decorre que a autocrítica – ou autocensura – é algo incorporado pelas mulheres desde a tenra infância (mesmo que seus núcleos familiares sejam feministas, como foi o meu, elas sofrerão essa pressão fora de casa). E tanto atividades de criação (como a composição, a improvisação, o arranjo) como posições de liderança (como a regência) requerem um alto grau de exposição e de autoconfiança, a despeito de críticas que possam surgir. Isso é algo difícil a priori, para homens e mulheres – mas, dado o contexto, me parece incrivelmente mais difícil para as mulheres. E, de um ponto de vista mais holístico, mas que acho muito real, nós mulheres carregamos em nossos corpos e almas as histórias de gerações de mulheres que não foram o que gostariam ou poderiam ter sido; que abriram mão de suas identidades ou sonhos em função de seus maridos, de suas obrigações sociais, de suas famílias. Romper com esse padrão não é tarefa simples, tampouco individual. É como se nadássemos contra a corrente. Felizmente, somos cada vez mais nadadoras, e uma hora chegaremos a um equilíbrio. Mas, até lá, ainda temos que dar muitas braçadas!

Na minha carreira, felizmente, do ponto de vista estritamente individual, não houve nenhuma situação significativa na qual eu tenha perdido uma oportunidade ou tenha ficado em piores condições por ser mulher. Considero isso uma sorte tremenda, considerando as histórias de tantas outras mulheres. Mas, mesmo assim, vivi (e ainda vivo) várias pequenas situações não determinantes para minha carreira nas quais tive algo negativo agregado ao fato de ser mulher. Nesse sentido, é ainda uma batalha diária – dentro e fora da gente.

8) Chega a ser vergonhoso cursos de história da música em cursos livres e universidades que não citam compositoras, seja para a música popular ou para a música erudita, como mudar esse processo e demonstrar obras tão valiosas da música brasileira e mundial?

Bem, acho que aqui há duas questões: uma é reconhecer que o protagonismo nessa área (bem como praticamente todas as áreas de criação) esteve na maior parte da história restrito ao universo masculino, e portanto há de fato menos mulheres que homens que tiveram a chance de se desenvolver como compositores/as ao longo da história da música. Acho que o primeiro ponto é problematizar o fato: por que há mais compositores que compositoras na história da música? Colocar isso em foco, ao meu ver, é reconhecer o problema – sempre o primeiro passo da sua resolução. A segunda ação, então, é efetivamente incluir as mulheres nos cursos e livros de história da música, nos concertos, nos simpósios, etc. Isso já está acontecendo, de forma cada vez mais intensificada, ao meu ver – mas ainda há muito por fazer. Contudo, acho fundamental que o principal critério seja a qualidade do trabalho em si – acho que perdemos força e entramos na lógica reversa se colocamos em destaque uma mulher pelo simples fato de ser mulher. Caso não haja um número significativo de mulheres com produção relevante para serem mencionadas ou incluídas em determinado contexto (livro de história, aula, programação), acho que o fato em si precisa ser debatido – isso me parece uma ação mais efetiva que incluir uma mulher sem produção relevante no contexto pelo simples fato de ser mulher. Contudo, essa é minha opinião pessoal e sei que o tema é complexo e vem sendo debatido por grupos e estudiosos – não tenho autoridade de fala nesse sentido.

9) Quais projetos tem desenvolvido? E quais conselhos você daria a uma musicista iniciando sua carreira hoje, com a decisão de ingressar nessa área profissional?

No momento estou muito envolvida com o universo da canção. Em 2012, musiquei poemas de Manoel de Barros para um projeto de música, poesia e teatro. Isso me levou aos poemas de meu avô, Simon Tygel, um poeta belga judeu que imigrou ao Brasil fugindo do nazismo, em 1939. Ele escreveu sempre em francês, e no Brasil foi protegido de Guilherme de Almeida, que prefaciou seu primeiro livro e traduziu outros três de seus 16 livros. Comecei a musicar seus poemas e encontrei um universo enorme tanto na sua produção (muitos livros inéditos), como em sua biografia, que é interessantíssima – nisso conto com a valorosa ajuda de Marc Storms, pesquisador do patrimônio belga no Brasil.

No momento estou desenvolvendo o projeto de canções sobre poemas de meu avô, e dando continuidade ao projeto sobre poemas de Manoel de Barros, agora repaginado para um show – em ambos, conto com a parceria maravilhosa da Tatiana Parra (também professora na Faculdade de Música Souza Lima), que era a voz para a qual eu já escrevia muito antes de trabalharmos juntas! Está sendo uma alegria e um grande aprendizado também.

Na semana passada participamos do Festival da Francofonia da Aliança Francesa de Brasília, com o show de canções sobre poemas de meu avô, e no dia 19 de abril estaremos no Itaú Cultural, em São Paulo, com o show com canções sobre poemas de Manoel de Barros, com participação de Neymar Dias (viola caipira).

O conselho que eu daria a jovens musicistas…? Não me sinto muito na posição de dar conselhos ainda, rs, mas acho que diria algumas coisas que são importantes para mim, e que eu gostaria de ter ouvido quando era mais nova: 1) Experimente muitas coisas, descubra o que te faz feliz. Você só vai descobrir fazendo. 2) Se você tiver isso já claro, paute sua carreira por essa prioridade e não pelo que (você acha que / te dizem que) o mercado “espera”. Pessoalmente sempre fui muito prudente no sentido de não arriscar tudo pelo sonho, mas o sonho sempre esteve lá. No fundo, o conselho é: “não se venda”. Não mude seu sonho pelo mercado ou pela segurança, não adeque seu som ao que você acha que vai vender mais, ou que será mais aceito. Se precisar desviar o caminho, desvie, se precisar esperar, espere – mas não mude o que é essencial para você. Quando a gente está de acordo com essa “verdade”, o universo conspira a favor. 3) Tudo o que se propuser a fazer, goste ou não, seja relevante ou não – uma vez que se propôs a fazer, faça bem-feito. Honre seus compromissos, tenha gratidão. Tudo que vai, volta! 4) Lute como uma garota!! Mas tenha consciência também que a gente compra uma briga mais difícil sendo mulher, e além de força é preciso sororidade, autocompreensão e empatia para com nossas próprias histórias – tanto nossas histórias individuais como as das gerações de mulheres que carregamos conosco. Em algum lugar, acredito que todas elas estão torcendo por nós.

Caríssima Júlia, agradeço muitíssimo a entrevista.

Eu que agradeço, caríssimo João, e o parabenizo pela iniciativa! Muito bacana que você tenha proposto fazer o mesmo número de entrevistas com homens e mulheres. Acredito que são ações assim – feitas tanto por mulheres como por homens – vão, gradativamente, mudando nosso contexto.

Obrigado Júlia. A contribuição com uma nova geração de musicistas profissionais, melhores formados, mais informados, é um legado que com certeza teremos em comum.

Com certeza, que assim seja!

Um abraço!

Outro!

Entrevista realizada por e-mail em 24 de março de 2019. 

Foto de Tarita de Souza! Acervo pessoal da musicista entrevistada.

#VemProSouzaLima